Brasília, 05 de Outubro de 2024 - 16:26

CONHEÇA A ALMA DE BRASÍLIA

*Por Renato Riella – jornalista pioneiro na cidade

Fui contratado há algum tempo para acompanhar importante cinegrafista em diferentes pontos de Brasília. Vale a pena lembrar desse episódio, quando a cidade completa 64 anos, em 21 de abril de 2024.

Expliquei ao artista da imagem:
– Vou lhe mostrar a Alma de Brasília!
– Toda cidade é insensível. Nenhuma tem alma – contestou.
– Você vai ver que Brasília tem um astral diferente.

Começamos o passeio. Levei o gaúcho à Esplanada. Com câmera de vídeo sofisticada e tripé, ele se instalou naquela ruazinha em frente ao Congresso Nacional. Corria de um lado para outro, se ajoelhando e até deitando no asfalto quente. Altamente profissional.
Era manhã de maio, esplendorosa.

Fiquei olhando de longe. De repente, dei uma carreira de 100 metros e gritei: “Saia do asfalto. Caminhe pelo gramado”.
O indivíduo se enfureceu: “Nunca! Em nenhum lugar do mundo a gente pisa na grama” – disse no gauchês mais puro.

E aí recebeu a minha primeira aula sobre a Alma da cidade. Afirmei: “Há muito tempo, existe uma faixa invisível, implantada na mente dos brasilienses, dizendo: É PERMITIDO PISAR NA GRAMA!

O cinegrafista adorou. Saiu saltitando no tapete verde, correndo do Ministério da Justiça até a Catedral, sem esquecer o Itamaraty.

Num devido momento, nos deitamos na relva. Admiramos o azul celeste único de Brasília, cidade que não tem poluição e está mais perto da atmosfera, mil metros acima do nível do mar. Foi quando relatei um fato histórico relevante.

Dizem que, nos primeiros tempos da cidade, há 60 anos, engenheiros perguntaram a Lúcio Costa, o criador de Brasília, como construir passagens de pedestre na Esplanada.
O urbanista, que era um grande ser humano, quase santo, respondeu:
-Fotografem o gramado do alto, de helicóptero. Onde houver “caminho de rato”, construam as calçadas em cimento” (caminho de rato era o gramado queimado pela passagem constante de pessoas).
E assim foi feito. Lúcio mandou, tá mandado!

CATEDRAL E RODOVIÁRIA

Levei o cinegrafista até a Catedral, onde fez filmagens básicas, talvez comuns. Não se entusiasmava muito por concreto. Contei a ele que as gerações nascidas na nossa Capital não têm sotaque. Parece que falam em latim, na pureza das pronúncias.
A população foi formada por gente de todos os estados e de muitos países. É uma experiência única em matéria de linguagem.

Do lado de fora da Catedral, o artista do vídeo desviou-se de mim. Encostou nas precárias barracas de souvenirs, onde ficou por um bom tempo. Vi que estava postando no celular imagens das flores do cerrado, para a namorada, moradora de Porto Alegre. Levou para ela alguns presentes. Deve ter feito sucesso.

Pensei: flor do cerrado compõe a Alma de Brasília – e a gente nem valoriza! Já foi até tema de música do Caetano.

PRATO TÍPICO DE BRASÍLIA

Andamos tanto que deu fome. Falei:
– Vamos almoçar o prato típico de Brasília, sem prato. A gente come com a mão!
Fez cara de nojo, mas as ordens eram minhas. Chegamos na Rodoviária do Plano Piloto e nos instalamos na pastelaria Viçosa. Comemos pastel com caldo-de-cana até fartar. Paguei baratinho as duas contas.
O visitante ficou feliz de ver a bagunça do local. Fez filmagens, comentando em voz alta: “Brasília tem povo, Brasília tem povo!”
Retruquei baixinho: “Brasília tem alma”.

O Rio tem feijoada, a Bahia tem vatapá, mas Brasília…
Expliquei a ele que um personagem folclórico da cidade, meu amigo já falecido chamado Tião Padeiro, instalou a Pastelaria Viçosa bem no começo da Capital. Ficou rico e extravagante.
De lá pra cá, de Juscelino a Ibaneis Rocha (atual governador do DF), todos os indivíduos importantes já comeram a mistura de pastel com caldo-de-cana – que precisa ser tombada como Patrimônio Imaterial de Brasília.

BUZINA E FAIXA DE PEDESTRE

O cinegrafista ficou assustado quando soube que, como parte da misteriosa Alma de Brasília, ninguém buzina na nossa cidade. Expliquei que existe outra faixa invisível dizendo isso, desde que JK inaugurou a Capital: NÃO BUZINE.
Se ouvir buzina, deve ser turista ou forasteiro. É passível de reclamação.

Meu visitante ficou assustado: “Como viver sem buzinar? Vocês são malucos?”.
Ora, é da nossa Alma, meu irmão! E ninguém precisa ser multado. Apenas precisa ser civilizado, assumindo a Alma de Brasília.

(Na verdade, faço um parêntese: precisamos fazer campanha para que este hábito de não buzinar seja mantido pelas novas gerações).

Na sequência do passeio, dei susto no profissional. Pedi que o novo amigo ficasse parado numa faixa de pedestre. Deveria atravessar quando viesse um carro. Bastava acenar com a mão.
Ficou com medo de morrer atropelado, mas topou. Repetiu a experiência em outras faixas, rindo e dominando o tráfego. Maior moral!

Ao final, me usou como modelo. Disse que eu iria aparecer no vídeo atravessando numa faixa, poderoso. É uma coisa que só se vê no Japão, onde os carros respeitam mesmo o pedestre.
Espero que este hábito não morra. Está na Alma mais recente de Brasília. (vamos pintar as faixas, por favor!).

OUTROS PONTOS DA CIDADE

Saímos em direção ao Palácio da Alvorada. Dei uma moeda a ele para jogar no “Poço dos Desejos”. Adorou! Pediu alguma coisa ao Além, mas não disse o quê. Foi numa época em que a gente ainda vivia cheio de esperanças românticas…

Passamos na Ponte JK. O cinegrafista me perguntou por que este monumento é ainda tão pouco conhecido lá fora. Não sei. Só sei que há muito tempo essa ponte já ganhou o título de mais bonita do mundo.

Nossa viagem por Brasília incluiu os canteiros de flores, lindíssimos, instalados nos balões de trânsito. O cinegrafista fez filmagens de todo ângulo, lamentando que outras cidades não tenham o mesmo projeto. Pensando bem, esses canteiros ilustram e perfumam a Alma de Brasília.

Para terminar, levei ele ao Memorial JK – mas não entramos. O gaúcho ficou meia hora fotografando o por do sol mais bonito do mundo, por todos os ângulos.

Meu amigo cameraman foi embora dizendo que um dia vem morar na cidade do JK. Relaxado que sou, nunca vi o filme dele. Vou procurar no Google.

TRÊS GRANDES FASES

Em 64 anos, a Alma de Brasília se consolidou em três fases, ligadas a governantes decisivos.
A primeira fase é óbvia. Foi marcada por Juscelino Kubitschek, apoiado por Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Bernardo Sayão, Athos Bulcão, Burle Marx, Israel Pinheiro e outros gênios.

JK, com toda a sua liberalidade, aceitou implantar uma Capital com amplos espaços verdes a serem preservados. Ele traçou a semente das cidades-satélites, que hoje se multiplicam, agora chamadas de Regiões Administrativas.

Trinta anos depois, Joaquim Roriz assumiu o comando do Distrito Federal. Em quatro mandatos, honrou a memória dos fundadores de Brasília.
Fez a Ponte JK, que concorre em beleza com as principais obras de Niemeyer. E removeu 64 favelas, que poderiam ter deteriorado o projeto de Lúcio Costa.

Roriz criou mais de dez assentamentos, abrigando mais de cem mil pessoas carentes de habitação. Formou cidades como Samambaia, que hoje tem melhor infraestrutura do que a maioria dos municípios brasileiros.

Nos anos seguintes, o DF sofreu com administrações críticas. Em 2019, um advogado virou Governador do DF, sem experiência política anterior. Ibaneis Rocha já está no segundo mandato de Governador e teve a sabedoria de ser fiel ao legado de JK.

Sua primeira grande obra, na Saída Norte, chama-se Complexo Viário Joaquim Roriz, homenageando o famoso Governador. Vale a pena dizer que, nesta obra, Ibaneis quebrou um tabu, ao revitalizar a complicada Ponte do Bragueto, hoje nota 10.
Ele tem como sua grande obra o Túnel Rei Pelé, esperado há décadas, para desafogar o tráfego em Taguatinga. E pretende ampliar a estrada de Brazlândia e a rodovia de Planaltina, obras cobradas desde o início de Brasília.

Outra marca do Ibaneis é a Universidade do Distrito Federal, já em operação, com ensino superior gratuito para todos. O atual Governador luta para privatizar a Rodoviária de Brasília (tomara que mantenha o pastel da Viçosa) e promete recuperar o Teatro Nacional até o fim do Governo.

Com JK, Roriz e Ibaneis, Brasília pode dizer que preserva a sua alma.
O DF tem 3 milhões de habitantes, ostenta índice de analfabetismo de quase zero, mantém o maior PIB per capita Brasil e surge como recanto ideal para se viver.
É mesmo um lugar brasileiro abençoado por Lúcio Costa.

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